Katia Stocco Smole
Diretora do Mathema
É comum que ao ensinar o sistema de numeração decimal na escola sigamos um roteiro que se inicia nas unidades, passa pelas dezenas, chega às centenas e assim por diante. Espera-se com esse roteiro básico que os alunos aprendam simultaneamente a ler, escrever, comparar e operar com o sistema naturalmente. Mas será que esse ensino tão fragmentado e linear se aproxima da forma como os alunos pensam a respeito da escrita de números e das regras do sistema de numeração decimal?
Que conclusões as crianças tiram sobre os números e sua representação decimal a partir de seu contato cotidiano com a numeração escrita, ao escutar os adultos falarem sobre preços e medidas, quando ouvem comparações de preços entre marcas de determinado produto, ou mesmo ao ver outra pessoa recorrer ao calendário para calcular os dias que ainda faltam para um aniversário ou passeio?
Lerner e Sadovsky (1996) pesquisaram como crianças de cinco a oito anos se aproximam da compreensão da numeração escrita, especialmente da escrita de números no sistema decimal. Para isto usaram entrevistas clínicas com duplas de crianças por meio de questionamentos e atividades de comparação e produção espontânea de escritas numéricas.
No estudo as pesquisadoras identificaram que desde cedo são formuladas hipóteses para escrever e ler números maiores do que 10, seja fazendo uso da quantidade e da posição dos algarismos para comparar números, seja se apoiando na vivência anterior com dezenas, centenas e unidades de milhar para escrever outros números, de modo geral se baseando na numeração falada para elaborar considerações a respeito da numeração escrita.
Lerner e Sadovsky chegaram à conclusão que perceber regularidades no sistema de numeração é uma condição necessária para compreender suas regras e neste processo as crianças criam estratégias que estão diretamente ligadas à convivência com o próprio sistema.
Elas também identificaram que a apropriação da escrita convencional dos números pelas crianças não segue a ordem da série numérica. Para compreender o sistema e fazer suas escritas as crianças primeiro manipulam a escrita de números com zeros – dezenas, centenas, unidades de milhar –, e só depois elaboram a escrita dos números posicionados nos intervalos entre eles.
A escrita de números e sua relação com a fala
Observe esse diálogo entre uma professora e uma aluna de 6 anos.
Professora (P) – Didi, você pode escrever 61?
Didi (D) – não, só 60 (escreve sessenta).
P – Mas se você sabe escrever 60, não consegue escrever sessenta e um?
D – Pensa um pouco e escreve 601.
P – Por que você acha que sessenta e um é escrito assim?
D – Porque se escreve assim ué. Depois é só fazer – 602 (sessenta e dois), 603 (sessenta e três) – 604 (sessenta e quatro). Eu sei todos!
Agora veja esse outro diálogo:
P – Jojo, eu ditei quatrocentos e sessenta e um e você escreveu 40061. Pode me explicar como pensou?
J – Tem o 400 e tem o 61!
P – Uma colega sua escreveu assim: 461. O que você acha disso?
J – Não pode, assim é 4 e 61. Esse é dos quatrocentos, tem que ser assim 40061
Na mesma turma, outra criança, que vamos identificar como Nina.
P – Eu ditei quatrocentos e sessenta e um e você escreveu 40000061. Pode me explicar como pensou?
N – Ué, tem muitos zeros, né? Então escrevi assim.
Na mesma turma a professora ainda encontrou as seguintes escritas: 41001 – 410061 – 461001 – 4071 – 400601. Veja as explicações dos alunos na conversa individual.
Para 4071 – Chiiii! Troquei tudo. Posso fazer de novo? E faz assim: 4061. Tem que ter um zero né, porque é dos quatrocentos.
Para 410061 – É quatro, cem, sessenta e um (parece ter a mesma hipótese de quem escreveu 40061, só que explicita o 100).
Para 461001 – Tem que ter o 100. Eu acho que é assim.
Um aspecto que chama a atenção refere-se ao modo como o zero é empregado nos registros e as argumentações elaboradas para justificar as escritas. Mesmo desconhecendo as regras do sistema de numeração decimal, há crianças que mencionam o zero como um marcador de posição, e relatam as hipóteses que elaboram a partir de sua interação com esses números de modo bastante ligado a forma como falam. Parece mesmo que as crianças “escrevem como falam”. Além disso, misturam os símbolos que já conhecem e procuram fazê-los corresponder com a ordenação dos termos na numeração falada.
Vejamos mais exemplos, novamente a partir de um ditado de números. Tetê escreve 6 para o 100 e explica:
T – Olha, quando se fala cem, começa com “cê”, então é esse o cem.
Bibi escreveu 209, quando a professora ditou 29. Ela justifica:
B – Olha vinte e nove, fala bem rápido que dá vinte e nove.
É comum que mesmo em alunos mais velhos essa escrita apareça quando eles ainda estão instáveis quanto a determinados trechos da sequência numérica. É o caso de um aluno do 5º ano que em fevereiro escreveu 9.500,23 quando sua professora ditou 9 523.
Lerner e Sadovsky afirmam que hipótese segundo a qual a escrita numérica é o resultado de uma correspondência com a numeração falada conduz as crianças a elaborarem notações não convencionais, porque ao se sentir em conflito diante do número que escreveu, a criança reage com perplexidade e insatisfação. Esse incômodo a leva a efetuar correções, procurando “encurtar” a escrita, ou interpretá-la atribuindo-lhe um valor maior.
No entanto, essas correções somente são possíveis depois da escrita dos números. Isto é, a escrita inicial entra em contradição com as hipóteses vinculadas à quantidade de algarismos das notações numéricas. Tomar consciência desse conflito e elaborar ferramentas para superá-lo parecem passos necessários para progredir até a notação convencional. A forma de fazer isso se relaciona diretamente com a didática em sala de aula.
Há muitas intervenções possíveis para auxiliar os alunos a avançar ou rever suas formas de representar os números em qualquer idade. Uma delas é o confronto entre as diversas escritas que apareceram na sala. Por exemplo, no caso do aluno do 5º ano, fazer um painel com as diversas representações surgidas na sala, inclusive a dele, permite a todos analisarem semelhanças e diferenças entre elas, refletindo o porquê de não precisarmos escrever todos os zeros do 500 em 9523, ou se é necessário colocar o 23 depois da vírgula perguntando, inclusive, os motivos que levaram o aluno a essa forma de grafar.
Do mesmo modo, pedir aos alunos que analisem ao menos quatro notações para 471 (400701, 4701, 40071,471) auxilia na compreensão de que na notação convencional os “zeros ficam escondidos embaixo dos outros números” como uma criança expressou a sua escrita em relação as demais.
Estimativas também são uma ótima forma de explorar a produção de escritas numéricas. É possível organizar um espaço na sala de aula para colocar semanalmente propostas de estimativa, deixando um pote ou vaso com tampinhas exposto sobre uma mesa, um copo com grãos de feijão etc. Na mesma mesa é colocada uma caixa com papéis cortados e lápis ou caneta coloridos, e na parede um papel sobre o qual os alunos possam colar suas estimativas. A proposta é que as crianças estimem a quantidade de objetos que há no recipiente, registrem a quantidade estimada no papel e colem no cartaz:
Depois de alguns dias, são contados os objetos e analisadas as estimativas e as escritas, podendo revisar aquelas que ainda não estiverem na forma convencional.
Há ainda as fichas sobrepostas, cujo uso se sugere a partir do segundo ano do ensino fundamental e tem como objetivo principal trabalhar a relação entre a escrita de um número no Sistema de Numeração Decimal e sua decomposição nas ordens do sistema. Trata-se de um conjunto de fichas que permitem escrever os números de 0 a 9.999. Assim, para representar o número 2471, utilizamos as fichas:
Que devem ser sobrepostas para formar o número desejado:
As fichas permitem a percepção das diversas composições deste número.
Cada série trabalha com uma parte das fichas de acordo com a ordem numérica mais adequada a seus alunos. Assim nas atividades para o 2º ano as atividades utilizam apenas as fichas até centenas, enquanto as séries superiores usam as fichas com unidades de milhar. É possível saber mais a respeito de fichas sobrepostas na seção Sala de Aula.
Indicamos ainda o Jogo das três cartas que está na seção Jogos desta home para explorar as relações de leitura, escrita e comparação de números no sistema de numeração decimal.
Compreender o sistema decimal e suas regras é importante para a construção de muitas outras ideias em matemática, desde as operações, passando pelos números decimais e chegando ao sistema métrico decimal. Entender que os alunos têm hipóteses, saber como respeitá-las e a forma de fazer com que avancem em sua compreensão a partir delas é um passo e tanto para que uma boa aprendizagem ocorra.
Conheça mais
NOGUEIRA, Clélia M. I. e BARBOSA, Magda R. F. As crianças, os números do cotidiano e os números da escola. Publicado em Investigações em Ensino de Ciências – V13(2), pp.129-142, 2008
Disponível em: http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID178/v13_n2_a2008.pdf (acessado em março de 2016)
PARRA, Cecília e SAIZ, Irma (org). Didática da matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artmed, 1996.
Acesse www.youtube.com e procure pelo vídeo – Escrevendo números grandes. Esse vídeo foi produzido para a série Matemática é D+, pela Fundação Victor Civitta e mostra uma professora desenvolvendo atividades a partir das hipóteses de escrita dos seus alunos para números de dois ou mais dígitos. (Acessado em julho de 2011)
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Assim como a compreensão de como a criança pensa na construção da escrita e da leitura é importante para mediarmos suas aprendizagens, também é importante saber como as crianças pensam sobre a construção e registro dos números e a partir desse conhecimento planejarmos e elaborarmos estratégias que as permitam compreender e registrar de forma convencional os números.
Muito produtivo.