Por Kátia Stocco Smole, diretora do Mathema,
e Cristiane Chica, gestora pedagógica do Mathema
A palavra treino pode ser associada a diversas atividades realizadas pelos seres humanos. Treina-se para praticar melhor um esporte, para falar em público, para melhorar o desempenho em atividades como bordado, caligrafia, entre muitos outros exemplos, que poderiam ser dados. Mas a ideia de treinar também pode ser associada à educação, em especial à matemática.
Há pessoas, e entre elas educadores, que concordam com a ideia de que, para aprender matemática, é necessário realizar muito treino e que ele é parte importante dessa aprendizagem. Mas há quem diga que o treino em matemática só faz sentido em uma concepção ultrapassada de escola, ensino, aprendizagem e matemática. Quem está com a razão: aqueles que defendem o treino nas aulas ou quem o repudia? No século 21, há lugar para a ideia de treino em aula de matemática? Quais os significados que a palavra treino assume ante uma visão atual de ensino de matemática? Como e quando propor o treino nas aulas de matemática? A proposta do presente texto é examinar um pouco mais de perto tais questões.
No dicionário¹ Michaelis, a palavra treinar significa: “acostumar, adestrar ou submeter a treino: treinar o corpo, treinar a mente”. Para os esportistas, o treino é “o conjunto de serviços devidamente selecionados que visam atingir o objetivo previsto de uma forma eficiente e econômica.”²
Tomemos como exemplo o caso de um nadador: sem dúvida, para ele ter precisão nas viradas ou aprimorar os movimentos de pés e braços durante o nado, treinar é crucial na obtenção de resultados cada vez melhores no esporte que pratica. Em uma competição de alto nível, qualquer milésimo de segundo ganho pode ser decisivo na conquista da medalha. Poderíamos fazer uma analogia como essa com diversos outros esportes.
Entretanto, quando tratamos de treinar na escola e, em especial, de treinar para aprender matemática, estamos nos referindo a adestramento, a atingir um objetivo de forma eficiente e econômica? O foco é competir e ser mais rápido para “conseguir medalhas”? Cremos que não. Embora o ponto de partida do treino em um esporte e do treino na escola seja (ou deveria ser) a aprendizagem, as finalidades para o treino em cada atividade são bastante diferentes. Em educação, no lugar de treino, seria melhor usar a palavra “exercitação”.
Por que exercitar
Depois de aprender, ou para aprender mais, é preciso um repensar, um tempo de apropriação e a exercitação pode ser inserida nesse contexto. Estudo como os de Sprenger (2008) e Luckesi (1990) indicam que uma aprendizagem profunda, com mais sentido, envolve tempo para rever novamente aquilo que se conheceu, exige experiência, análise de dados e um espaço pessoal de reflexão a respeito do assunto abordado. É preciso, assim, favorecer a atenção a respeito daquilo que se está aprendendo para que o cérebro detecte padrões e forme memória dos aspectos mais relevantes da aprendizagem em questão.
Segundo Sprenger (2008), a exercitação é um processo importante para a promoção do armazenamento das informações na memória de longa duração, ou seja, para aprendermos algo, para além das primeiras impressões, é importante que as informações armazenadas nas diversas áreas do nosso cérebro possam ser facilmente acessadas de forma eficiente quando necessitarmos delas. Segundo a autora, isso ocorre se houver oportunidades de o cérebro pensar muitas vezes a respeito de um mesmo assunto, de modo a formar um caminho, um percurso de aprendizagem com significado, fazendo com que as informações inicialmente adquiridas por meio das experiências como uma atividade ou ação realizada pontualmente, se transformem em conhecimento. Para a autora, a exercitação pode auxiliar em tal construção, desde que seja realizada com frequência e por variadas propostas, para que aquele que aprende seja capaz de aperfeiçoar e moldar o trajeto rumo a uma aprendizagem significativa e a uma memória de maior duração.
A autora afirma ainda que “as informações que entram na memória imediata são rapidamente perdidas, a menos que de algum modo sejam manipuladas” (p. 96). A exercitação seria, assim, uma forma de manipulação mental das informações, para que elas sejam arquivadas em várias áreas do cérebro e evocadas em diversos momentos, por distintas rotas de acesso.
Dessa forma, exercitar, em uma concepção atual de ensino, é poder pensar mais a respeito de um assunto, rever, ter o tempo de aprender para apropriar-se melhor de um conhecimento (conceito ou procedimento), aprofundar-se nele, ter memória daquilo que é relevante, validar conclusões, entre outras possibilidades. Na visão de Sprenger (2008), há dois modos de treinar ou exercitar – um mais rotineiro e outro elaborativo.
Por “rotineiro” entendemos aquela exercitação baseada na repetição de fatos. Esta exercitação é eficaz quando desejamos que as informações armazenadas sejam utilizadas de certa forma, em um dado formato, quase similar à maneira pela qual foi apresentada, sendo que o caminho para as acessar, se faz de um único modo. Geralmente, os conhecimentos factuais (como a tabuada, por exemplo) e parte dos procedimentais (uma técnica operatória específica) podem utilizar-se do treinamento rotineiro para chegar à memória de longo prazo.
Já a exercitação elaborativa é mais útil quando desejamos obter memória ou conhecimento profundo de conceitos, ou quando é necessário estabelecer relações e conexões entre ideias e conceitos, ou mesmo fazer com que o cérebro ganhe determinadas habilidades que permitirão aprender coisas novas, desenvolver estratégias ainda não conhecidas, reconhecer semelhanças com situações ou problemas enfrentados antes. Os conhecimentos de natureza conceituais, as habilidades de modo geral e parte dos conhecimentos procedimentais necessitam de exercitação elaborativa para serem compreendidos, aprofundados, armazenados e acessados em variadas ocasiões.
Como exercitar
Uma das tarefas da escola é, portanto, apresentar aos alunos situações de exercitação diversas, de acordo com o que se deseja que eles aprendam, repetindo experiências e aperfeiçoando sempre. Como afirmamos, exercitar não é uma simples repetição com fins de memorização, mas a oportunidade de poder rever, de criar rotas, caminhos e tempo para aprender, podendo apropriar-se melhor de um conhecimento, de não deixá-lo perdido ou esquecido pelo uso em uma situação pontual, mas refletir a respeito dele, validá-lo e redescobri-los de diversas formas.
O verdadeiro sentido da exercitação está na busca de uma aprendizagem para além dos fatos e das curiosidades. O que se espera é uma aprendizagem com significado e com o desenvolvimento de habilidades de pensamento mais sofisticadas. Por esse motivo, quando se planeja uma ação de exercitação para os alunos, é preciso pensar no que vale a pena que eles exercitem e quais critérios serão utilizados para a escolha do que treinar. Consideramos que a relevância do tema, sua complexidade e as dificuldades dos alunos podem servir como bons indicadores nessa tomada de decisão por parte do educador.
O cálculo mental rápido envolvendo as operações básicas certamente é um tipo de conhecimento fatual que precisa ser treinado para que os alunos disponham de uma memória sobre ela de forma ágil e direta quando necessitarem. Uma exercitação rotineira auxiliará os alunos no armazenamento desse tipo de situação. Mas mesmo nesse caso, há outros caminhos a serem utilizados na exercitação para além de pedir aos alunos que escrevam muitas vezes os fatos fundamentais da multiplicação em seus cadernos, por exemplo. Em situações como as propostas a seguir, podemos dar a chance de os alunos traçarem outros caminhos para acessar esse conhecimento, atendendo aos diferentes estilos de aprendizagem, emoções, conexões pessoais e interação social. Vejamos uma sequência de atividades que permite a quem aprende o treino de fatos sem que, no entanto, isso se restrinja à cópia mecânica.
Para os alunos que estão nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, as adições básicas, especialmente aquelas com soma 10, são úteis como referência para cálculos com valores mais altos, bem como para a compreensão da noção de dezena. Após e durante a própria exploração da noção de adição, é possível utilizar um jogo como “Memória de 10” para que os alunos ampliem sua compreensão de adição, ao mesmo tempo em que exercita as adições com valores até 10. O jogo em questão se baseia no conhecido Jogo da Memória e é proposto para grupos de dois a quatro alunos. Joga-se com cartas que vão de 1 a 9. O objetivo do jogo é formar pares que somem 10.
A proposta é que os alunos joguem semanalmente “Memória de 10” durante aproximadamente quatro semanas. A cada vez que jogarem, espera-se que ampliem a compreensão a respeito do jogo, das próprias adições e criem memória de adições com duas parcelas cuja soma seja dez. Para auxiliar nesse processo, se o professor alia ao jogo problemas, produção de textos diversos e rodas de conversa, propicia a construção dos caminhos relativos aos conceitos trabalhados.
Luckesi (1990) chamaria essa exercitação a que nos referimos até aqui como exercitação de assimilação, que se justifica quando consideramos que as aprendizagens se dão também por meio de atividades reiterativas ou variadas em torno de uma mesma temática, de tal forma que a compreensão vai-se constituindo, ganhando forma, adquirindo um modo de ser que passa a ser habitual. (p. 98).
Quando passamos de fatos a conceitos, procedimentos mais complexos ou almejamos o desenvolvimento de habilidades de pensamento mais complicados em matemática, é preciso ampliar o leque de possibilidades e propostas de exercitação. Sprenger (2008) afirma que, nesse caso, é preciso usar estratégias didáticas que permitam ao aluno dar sentido pessoal (recodificar) ao que está aprendendo. Luckesi traria aqui as ideias de exercitação de aprofundamento e de inventividade.
A exercitação elaborativa para aprofundar as reflexões a respeito de um assunto em matemática envolve tempo para análise, como ocorre quando se propicia tempo para que os alunos reflitam a respeito das muitas formas de resolver um problema específico. Da mesma forma, é preciso que, ao exercitar os alunos, seja possível verificar se o que fizeram foi adequado, se haveria outro caminho melhor, mais eficiente, menos arriscado. Perceber repetições, contradições, inconsistências e permanências são parte de uma exercitação que vai além da memória de fatos. Produzir sínteses pessoais, listar ideias novas, analisar erros e realizar um jogo muitas vezes são formas de exercitação elaborativa.
Luckesi afirma que a inventividade também é importante na ação de exercitar. O autor considera que a “inventividade é uma ação criativa que acrescenta à assimilação dos conteúdos socioculturais, internalizados sob a forma de condutas, e à intuição o insight, a espontaneidade, o risco. É propriamente a situação em que se produz o novo, que pode ser genial ou não muito distante do que já havia sido produzido anteriormente, mas novo. O novo nasce do velho e o supera por incorporação”.(p. 99).
Em se tratando de matemática, a exercitação de inventividade, que a nosso ver se aproxima do conceito de exercitação elaborativa, pode ocorrer por diversas propostas. Destas, destacamos a criação por parte do aluno de atividades, problemas, textos e aulas, entre outras possibilidades, que permitem ao aluno planejar, ampliar a reflexão a respeito de um assunto e ver um conceito ou procedimento sob um enfoque novo para ele. Sprenger afirma que para que a transferência da aprendizagem ocorra, os alunos devem ser capazes de pegar seu conhecimento e entendimento e usá-los quando confrontados com situações problemas imprevistas ou incomuns. (p. 106)
Não há uma regra a seguir que diga respeito a quanto é bom exercitar. Os estudos aqui mencionados indicam que a frequência da exercitação é mais importante do que a quantidade. Podemos inferir também que se exercita tanto para aprender mais a respeito de um assunto novo (assimilação), quanto para não deixar cair no esquecimento conceitos, procedimentos ou habilidades importantes ou mais complexos de serem aprendidos (manutenção), para ampliar a compreensão a respeito deles (aplicação) e mesmo para extrapolar as situações iniciais nas quais foram apresentados (inventividade).³
Situações de exercitação podem ocorrer em sala de aula quando são propostas novas atividades visando às modalidades mencionadas por meio de trabalho coletivo ou diversificado. E podem também ocorrer por um tempo de trabalho em casa, na forma de tarefas de tipos variados. Em qualquer caso, tanto a forma de propor, quanto a finalidade da proposição são elementos importantes para provocar a aprendizagem que se espera. Qualquer que seja a proposta, os alunos também precisam conhecer o propósito da tarefa, saber suas metas e receber retorno a respeito do que fizeram, de como fizeram e dos progressos que realizaram por meio da exercitação feita em sala ou em casa. A discussão das tarefas propostas em pequenos grupos ou coletivamente também é um recurso que favorece a compreensão do aluno daquilo que ele fez bem, no que pode melhorar e de formas novas de conhecer que, sozinho, ele não havia percebido.
Esta reflexão a respeito da exercitação e sua finalidade permite observar que a forma de propor a exercitação é importante, seja qual for a sua finalidade. Nesse ponto, então, destaca-se a importância do sentido de problematização que a exercitação deve assumir. Sem dúvida, estudos diversos permitem afirmar que o cérebro desafiado se torna desejoso de aprender mais. É na desacomodação de um problema que ele busca caminhos novos para solucionar o que o desafia. Portanto, a frequência e a forma da proposta de exercitação que se faz em matemática são essenciais. Talvez para fatos e procedimentos, baste fazer um pouco mais de exercício de um mesmo tipo. No entanto, habilidades mais complexas exigem o enfrentamento de problemas mais complexos. Será no tempo que se propicia à inventividade e à formulação de raciocínios mais complexos que de fato ocorrerá a exercitação que permite a aprendizagem da matemática para além de fatos elementares.
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Referências bibliográficas
LUCKESI, Cipriano Carlos. Subsídios Para a Organização do Trabalho Docente. In Prática Docente e Avaliação. Rio de Janeiro: ABT, 1990.
SPRENGER, Marylee. Porto Alegre: Artmed, 2008.
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É UM TEXTO EXPLICATIVO E INFORMATIVO AO MESMO TEMPO, POIS EVIDÊNCIA QUE ESTUDAR A MATEMÁTICA APROFUNDADAMENTE NÃO É TREINAR, MAS EXERCITAR OU MELHOR REVER DETERMINADO CONTEÚDO DE DIFERENTES MANEIRAS PARA O CÉREBRO COMPREENDER A RELAÇÃO RECORRENTE DO MESMO E INVESTIGAR OS SEUS PRÓPRIOS ERROS SOBRE AS DEFINIÇÕES CONCEITUAIS, ALÉM DE OBTER SUA PRÓPRIA AUTOMIA EM RELAÇÃO AO ESTUDO.